Com uma trajetória marcada pelo cuidado, escuta e compromisso com a inclusão, a terapeuta ocupacional Dra. Laís Melo Andrade compartilha sua experiência no trabalho com crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), a importância da intervenção precoce, o papel da família e os desafios enfrentados em diferentes contextos sociais.
“Hoje, acredito que o principal desafio da população com TEA é ser respeitada e reconhecida em sua diversidade.Existe um estereótipo sobre quem é a pessoa com TEA e como ela se comporta, o que já sabemos ser uma visão limitada acerca do espectro”, ressalta em um dos trechos da entrevista.
Durante o nosso bate-papo, Dra. Laís destaca a importância da avaliação terapêutica ocupacional, que vai além da análise das habilidades de desempenho e funções — como as sensório-motoras, sociais e cognitivas — e inclui a compreensão do contexto de vida, da família, do domicílio e dos espaços de sociabilidade, como a escola, o trabalho e os espaços religiosos.
No mês dedicado à Conscientização do Autismo, confira a entrevista completa e entenda por que o olhar da Terapia Ocupacional é essencial no cuidado com a pessoa com TEA — um trabalho feito com dedicação e amor, capaz de transformar vidas e promover mais qualidade de vida e bem-estar para essa população.
CREFITO-7: Poderia nos contar um pouco sobre sua experiência como Terapeuta Ocupacional e sua atuação com pessoas dentro do espectro autista?
Laís Melo Andrade:Minha atuação profissional com esse público teve início em 2017, na Residência Multiprofissional no contexto da Atenção Básica, onde tive a oportunidade de acompanhar algumas crianças do território da Unidade de Saúde da Família em que eu era residente. Desde então, venho me dedicando à prática clínica voltada para o público infantil. Tive a oportunidade de atuar com a população em situação de rua e perceber os desafios e as injustiças sociais vivenciados pelas famílias e crianças com TEA nesse contexto. Atualmente, atuo exclusivamente na rede privada, com um público inserido em outro contexto socioeconômico, mas que também enfrenta desafios, vulnerabilidades e, igualmente, vivencia conquistas.
CREFITO-7: Qual é o papel da Terapia Ocupacional no desenvolvimento e na autonomia de pessoas com TEA?
Laís Melo Andrade: O terapeuta ocupacional é o profissional que avalia as habilidades ou competências de desempenho necessárias para a realização das atividades do dia a dia do sujeito. A partir dessa avaliação e da análise da atividade, trabalhamos com enfoque no desempenho ocupacional e na participação, para que a pessoa consiga exercer seus diversos papéis ocupacionais na vida cotidiana. Para isso, consideramos não apenas os aspectos biológicos, mas também o ambiente e o contexto em que cada pessoa está inserida, avaliando as necessidades de adaptação, mobilização social, modificações ambientais ou na realização da tarefa, bem como as potencialidades que cada pessoa com TEA apresenta, possibilitando, assim, sua participação na vida comunitária e a construção da sua independência. Por isso, por ser o profissional que observa, de maneira técnica, crítica e política, a rotina e a realização de todas as atividades que a compõem, é que o terapeuta ocupacional é fundamental no cuidado da pessoa com TEA. Lembrando, é claro, que atuamos em parceria com outras categorias profissionais, também essenciais para o acompanhamento.
CREFITO-7: Quando se deve iniciar o acompanhamento Terapêutico Ocupacional?
Laís Melo Andrade: O mais breve possível. Geralmente, a partir dos 12 a 18 meses, as famílias começam a observar dificuldades da criança na interação com o ambiente, em alguns aspectos sensório-motores ou até mesmo a perda de alguma habilidade que a criança já havia desenvolvido. Mesmo que ainda não haja um diagnóstico fechado, buscar o terapeuta ocupacional nesse momento é muito importante, pois a intervenção precoce possibilita a construção de conexões neurais potentes para o aprendizado.
CREFITO-7: Como ocorre o encaminhamento para o Terapeuta Ocupacional?
Laís Melo Andrade: A pessoa com TEA pode buscar o atendimento do terapeuta ocupacional de maneira espontânea. Todavia, tanto na rede pública quanto na privada, geralmente o encaminhamento acontece por meio de profissionais da área da saúde ou da educação que identificam a necessidade de atendimento com o TO. É importante salientar que, na Atenção Básica, existem terapeutas ocupacionais nas equipes multiprofissionais. Assim, a pessoa com TEA pode buscar a orientação do TO. já na Unidade Básica de Saúde, por meio do agente comunitário ou do enfermeiro que acompanha a família. Nesse contexto, o TO. pode promover intervenções domiciliares, participar da vigilância do desenvolvimento, oferecer orientações, acessar a rede comunitária e encaminhar para a rede especializada. Além disso, os TOs também atuam na Rede de Atenção Psicossocial, como nos CAPS e CAPS infantis, que podem ser acionados. Não estamos limitados aos espaços ambulatoriais.
CREFITO-7: Quais são os principais desafios enfrentados por pessoas com TEA no dia a dia e como a TO pode ajudá-las a superar essas dificuldades?
Laís Melo Andrade: Hoje, acredito que o principal desafio da população com TEA é ser respeitada e reconhecida em sua diversidade. Existe um estereótipo sobre quem é a pessoa com TEA e como ela se comporta, o que já sabemos ser uma visão limitada acerca do espectro. Mulheres, meninas, pessoas LGBTQIAPN+, pessoas negras, indígenas, pessoas de classes socioeconômicas menos favorecidas — enfim, existe uma diversidade de perfis sociodemográficos que, muitas vezes, não são enxergados. Além disso, cada pessoa apresenta necessidades, dificuldades, potencialidades e trajetórias singulares. Pensando nesses aspectos, o terapeuta ocupacional pode avaliar e contribuir na construção de estratégias que facilitem a participação dessas pessoas na vida comunitária. Além disso, temos o papel social e político de buscar conhecer a legislação e sermos ativos na luta pela garantia de direitos dessa população, tanto de maneira individual quanto coletiva.
CREFITO-7: Como é feita a avaliação terapêutica ocupacional de uma pessoa com TEA? Quais aspectos são observados?
Laís Melo Andrade: A avaliação do T.O. acontece em um continuum de acompanhamento — estamos sempre em processos de avaliação e reavaliação ao longo das intervenções. Além de avaliar as habilidades de desempenho e funções, como as sensório-motoras, sociais e cognitivas, também é necessário compreender o contexto de vida, a família, o domicílio e os espaços de sociabilidade, como escola, trabalho e espaços religiosos. Todo esse trabalho é realizado por meio da observação clínica do profissional, entrevistas, testes, protocolos e escalas padronizadas.
CREFITO-7: Quais técnicas e abordagens mais eficazes você utiliza no acompanhamento terapêutico de pacientes com TEA?
Laís Melo Andrade: de cada caso, nós, terapeutas ocupacionais, podemos utilizar abordagens e modelos diversos, considerando nossa formação e direcionamento profissional. O terapeuta ocupacional é quem decide quais abordagens de intervenção irá utilizar, a partir das demandas de cada sujeito. Hoje, na atuação com o público infantil, utilizo principalmente abordagens psicossociais, lúdicas, sensoriais, motoras e o treino de AVDs, considerando sempre que o nosso enfoque é a ocupação humana.
CREFITO-7: A família tem um papel fundamental no desenvolvimento da pessoa com TEA. Como você trabalha a orientação e o envolvimento dos familiares no processo terapêutico?
Laís Melo Andrade: Na minha atuação com o público infantil, a família está envolvida em todo o processo terapêutico — ela é essencial tanto na avaliação quanto na intervenção. Costumo sempre conversar com os familiares ao final de cada atendimento, compreender como está a rotina e dar orientações. Também realizamos reuniões semestrais e entregamos relatórios de acompanhamento. Especialmente com esse público, é muito importante que o que é trabalhado em terapia também seja reforçado em casa. Por isso, oriento sempre a família sobre como estimular a criança no contexto domiciliar, valorizar o fazer independente da criança e manter uma proximidade com a escola. Muitas vezes, as famílias também necessitam de orientação quanto à sua própria rotina e apresentam demandas emocionais; nesse sentido, também intervenho e oriento para o acompanhamento psicológico.
CREFITO-7: Que tipos de adaptações e recursos são utilizados para facilitar a inclusão de crianças e adultos com TEA em diferentes ambientes, como escola e trabalho?
Laís Melo Andrade: Nos contextos da escola e do trabalho, a principal estratégia para facilitar a participação desse sujeito é realizar ações de educação em saúde com as pessoas que compõem esses espaços — sejam colegas de trabalho, chefias, professores, famílias de outras crianças ou colegas de classe. Se o ambiente for acolhedor e respeitoso, já temos um grande avanço. Para além disso, podem ser feitas algumas modificações na rotina, de modo que as demandas sejam melhor organizadas; adaptações nas tarefas escolares; estratégias e recursos para regulação sensorial (como mordedores, abafadores, coletes); tecnologias assistivas; e a comunicação aumentativa e alternativa, que pode ser pensada em parceria com a fonoaudiologia.
CREFITO-7: Você poderia compartilhar um caso de sucesso ou uma experiência marcante que evidencie o impacto da Terapia Ocupacional na vida de uma pessoa com TEA?
Laís Melo Andrade: Com certeza, uma experiência marcante foi a primeira que tive, ainda na Residência Multiprofissional, ao acompanhar de perto uma criança que não tinha diagnóstico fechado e uma família com muitas vulnerabilidades. Perceber o alívio no olhar de uma mãe que se sentia acolhida e direcionada foi, para mim, extremamente gratificante.
CREFITO-7: Para os pais e responsáveis que estão iniciando esse acompanhamento, quais são suas principais recomendações para potencializar os benefícios da Terapia Ocupacional no dia a dia?
Laís Melo Andrade: Deixar a criança ser criança, oferecer espaços para brincar, se sujar, explorar o ambiente, estar com outras crianças, estimular sua participação nas atividades do dia a dia e na rotina da família, além de evitar o uso indiscriminado de telas. Além disso, é importante buscar informações com embasamento científico e, sempre que necessário, tirar dúvidas com os profissionais que acompanham seus filhos.
Mini currículo:
Laís Melo Andrade é terapeuta ocupacional e especialista em Saúde da Família pela UFS, mestra e doutoranda em Saúde Coletiva pela UFBA. Possui cursos e formações complementares nas áreas de saúde pública, desenvolvimento infantil, intervenção precoce, brincar, TEA e Integração Sensorial de Ayres. Atua há 7 anos com o público infantil nos contextos da Atenção Básica e clínico.